Sem Palavras

sumiê de fios, de folhas, sem tinta e sem pincel, onde o espaço faz papel de papel, o fio faz o efeito da escrita, os livros, fios em branco, são lidos pelo avesso, de lado, de vulto, de soslaio, os fios das folhas em ritmo, ora gráfico, ora elétrico, escrevem rimas ricas, linhas em todas as direções devolvem, resolvem nosso emaranhado enquanto flutua a dura madeira, nua carne, árvore madura suspensa, susto que pensa, pressente, arrepio de pêlos que nascem, atravessam, passam, morrem no pálido da pele onde ainda persiste um nada que se move na força dos fios e revela sua leveza e eleva o peso do espaço com todas as palavras não ditas

Um olhar

o poeta me viu


bastou um olhar
e pode ver
a mola mestra
da aprendiz
que sou


a escolha que fiz
no avesso e apesar
da sorte adversa
de não pesar
de ser feliz


poeta é quem vê
o que não é de dizer
e ainda assim


diz

Saciedade

Só pedaços do mesmo tamanho
ficam prontos ao mesmo tempo,
sejam nacos ou migalhas.


A força para sacudir a panela
depende do que se põe nela
às vezes ao fogo brando
às vezes na fornalha.


Os crepes pedem paciência
as panquecas agilidade.
Cada receita pede
um gesto mais suave
ou mais grosseiro
conforme seu tempero.


Assim também se prepara
o gosto dos dias
o sabor das noites
até a saciedade.

Arte do Chá

ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo


ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

Minas

ANDAR
ANDOR
ARDOR
AR D'OURO
PRETO


há muito para subir em Ouro Preto
mesmo que o tempo tarde
andar devagar, bem devagar
escalar ruas
passo a passo
olhar para o chão
enquanto as montanhas
impassíveis
disputam nosso olhar
é no passar
que se põe o ardor
acima e abaixo
aos pés, ao céu
rochas para caminhar
mar de rochas
montanhas de pedra


há muito para descer em Ouro Preto
o frio das alturas
impregnado desse spleen
que não se explica
e a cada passo
uma lição de paciência
e a cada olhar
uma lição de silêncio
e a cada casa, porta, beiral
uma lição de história
que aqui perdura
dura, dura rocha
pedra sobre pedra
tudo que aqui se passou
também ficou
e fica em nosso passo
nessa rua
a ressoar
que a história
é a pré-história
de nós mesmos


que passamos

Saudação da saudade

minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida


aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz


ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento


aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim

Expectativas

do mesmo jeito
diferente


o que se quebra
pesa mais
do que o sonho leva


como se o dia
não passasse
dessa noite

Teu corpo seja brasa

teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo


um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo

Quem ri quando goza

quem ri quando goza
é poesia
até quando é prosa


meus pensamentos
cruzam os teus
como aviões no ar


da janela
os corações acenam
sem saber se vão voltar

Despedida

Antes que eu te deixe
Deixa eu dar um gole em você
Ficar de porre até o verão
Deixe uma dúzia de carinho
Do mais terno
Que dure todo o inverno
Me conte um sonho
Vou sonhar no outono
Depois me deixe ir
Se puder me espera
Volto quando acabar
A primavera.


tem palavra
que não é de dizer
nem por bem
nem por mal
tem palavra
que não é de comer
que não dá pra viver
com ela
tem palavra
que não se conta
nem prum animal
tem palavra
louca pra ser dita
feia bonita
e não se fala
tem palavra
pra quem não cala
pra quem tem palavra
tem palavra
que a gente tem
e na hora H
falta